D. João VI, um estadista de grande envergadura

Excelente escritor monarquista, Armando Alexandre dos Santos descreve neste artigo traços do grande estadista que foi D. João VI. Artigo publicado no site http://www.jbcultura.com.br/Armando/dvi.htm ainda durante as comemorações do bicentenario da vinda da Família Real para o Brasil, merece ser lido com toda atenção.


D. João VI, um estadista de grande envergadura

Armando Alexandre dos Santos (*)

Estamos ainda no ciclo comemorativo dos 200 anos da chegada da Família Real portuguesa ao Brasil, fato que haveria de produzir uma cadeia de conseqüências benéficas para nossa Pátria. Infelizmente, num país em que 75 % dos formalmente alfabetizados são, de fato, analfabetos funcionais incapazes de ler e interpretar um texto de dez linhas, há muita ignorância e desinformação sobre o período dito colonial da História brasileira.

Recordo que, há poucos anos, um dos principais redatores de um grande jornal paulistano, escrevendo sobre as origens do Brasil, referiu-se desinibidamente às "três naus da frota cabralina", em evidente confusão com as três embarcações de Colombo. E um colega seu precisava, eruditamente, que Cabral havia partido "da foz do rio Tagus". Na realidade, foi com treze embarcações que Cabral partiu de Lisboa, aqui chegando com doze, e a partida foi de Belém, à foz de um rio que em bom português se chama Tejo...

As gaffes desses jornalistas são bons exemplos da ignorância que campeia por estas bandas sobre um período da nossa História que durou nada menos do que 322 anos, e do qual a maior parte dos brasileiros não tem senão noções muito genéricas, superficiais e distorcidas.

Lamentavelmente, a historiografia oficial brasileira ─ em especial a posterior à proclamação da República, em 1889 ─ com freqüência subestima os grandes benefícios que trouxe ao Brasil a civilização portuguesa, ou é flagrantemente injusta com relação à Mãe-Pátria, faltando com a verdade por vezes de modo grotesco.

Felizmente não faltam historiadores sérios que, em estudos bem documentados e bem escritos, que resistem a qualquer crítica malevolente, fazem justiça àqueles heróis povoadores e missionários que deixaram as delícias e as comodidades do "jardim da Europa à beira-mar plantado", para virem "dilatar a Fé e o Império" nestas plagas então inóspitas e cheias de riscos.

É verdade que seus livros nem sempre têm toda a divulgação que mereciam ter. Mas eles existem, estão bem conservados nas estantes das bibliotecas, e de futuro poderão atestar que em nenhum momento deixou de haver bons brasileiros gratos ao que nos trouxe Portugal.

Personagem particularmente visado pelos pseudo-historiadores é D. João VI, o monarca posto pelas circunstâncias no leme da nau do Estado luso-brasileiro numa hora particularmente trágica, na qual, sem deixar de ser um homem bondoso, clemente, até um tanto bonacheirão, foi um grande rei e soube desempenhar seu papel histórico à altura das gloriosas tradições que representava.

Uma Europa em crise

Quando foi decapitado em Paris o Rei Luís XVI, em 1793, Portugal, então governado pelo Príncipe-Regente D. João, e a Espanha, na qual reinava Carlos IV, tendo como todo-poderoso ministro Manuel de Godoy, declararam guerra à República Francesa. Na mesma entente figurava a Inglaterra. Portugal enviou, para o Roussillon, região sul da França, uma divisão composta por seis regimentos de infantaria; essa divisão lá permaneceu quase dois anos, combatendo, com alguns sucessos apreciáveis, lado a lado com os espanhóis, contra os princípios da Revolução Francesa. Mas estes acabaram se impondo em Madri, com a traição de Godoy (o chamado "Príncipe da Paz"), e o governo espanhol fez a paz em separado com a França revolucionária e passou a defender os interesses desta na Península. Traindo os compromissos assumidos, voltou-se contra os aliados da véspera, chegando a declarar guerra, sucessivamente, à Grã-Bretanha e a Portugal. Estabelecida em 1801 uma paz iníqua e precária, prosseguiu o mesmo trabalho de sapa por parte de Godoy, que parecia empenhado não só em eliminar a independência de Portugal, mas também em autodemolir o próprio trono de seu país.

Essa política de Godoy, levada habilmente por ele durante mais de 12 anos, conduziu às invasões napoleônicas na Península. Foi nesse contexto que as tropas napoleônicas atravessaram o território espanhol e se precipitaram, em três hordas sucessivas ─ chefiadas por Junot, Soult e Massena ─ sobre Portugal. A reação que tiveram então os povos ibéricos, na defesa das suas liberdades e das suas tradições, foi heróica e grandiosa.

A resistência lusa contra os invasores franceses

No tocante à resistência portuguesa à primeira invasão revolucionária, o historiador austríaco João Batista Weiss assim descreve o levantamento nacional contra as tropas de Junot:

"Os portugueses desfraldaram a sua bandeira nacional, ao repicar dos sinos, com júbilo festivo e fogos de artifício na cidade [do Porto]. Como um fogo em erva seca correu este movimento pelo país; a 11 de Junho de 1808 o antigo Governador de Trás-os-Montes proclamou soberano o Príncipe Regente, e chamou às armas os habitantes. Nas cidades e aldeias respondeu o povo: 'Viva o Príncipe Regente! Viva Portugal! Morra Napoleão!'

"A 17 de Junho a mesma aclamação ressoou em Guimarães, a 18 em Viana, a 19 o Arcebispo de Braga fez retomar as prerrogativas pela Casa Real de Bragança, com grande concorrência do povo; osculou a antiga bandeira, e abençoou o povo, que cantou o Te Deum laudamus. Elegeu-se a seguir uma Junta, de que foi presidente o Bispo.

"Em Coimbra ardia a juventude estudantil a favor da libertação da pátria, e o templo da ciência converteu-se em arsenal de guerra. No laboratório de química preparava-se pólvora. Os estudantes espalhavam-se pelas aldeias, para incitar os trabalhadores manuais a armar-se; eram recebidos com o repique dos sinos, fogos de artifício e clamores de júbilo. Todos se armavam; os trabalhadores brandiam as suas gadanhas, desenterravam-se canhões que se tinham enterrado na última guerra de Espanha; frades com o crucifixo na mão iam à frente das tropas. O clero era todo fogo e chamas pelo levantamento nacional, mas impedia as crueldades que se tinham cometido na Espanha contra os inimigos.

"A situação dos franceses tornou-se grave. Junot conhecia toda a grandeza do perigo, não podia receber auxílio da França, nem por mar, porque os cruzeiros ingleses o dominavam e vigiavam ao longo de toda a costa, nem por terra, pois a Espanha estava toda em armas e todos os correios eram interceptados. Com 24.000 homens não podia dominar a sublevação de todo um povo" (História Universal, Barcelona, 1931, pp. 262-263).

Sobre o conjunto das operações militares entre os anos de 1808 e 1814, escreve o Pe. Joaquim José da Rocha Espanca:

"Este ano de 1814 foi o último da guerra. Ganhou o exército anglo-luso 16 batalhas que foram as do Vimieiro, Corunha, Talaveira, Buçaco, Fuentes de Honor, Albuera, sítios de Ciudad Rodrigo, Badajoz e Salamanca, batalha de Vitória, dos Pirineus, sítio de S. Sebastião de Biscaia, Nivelle, Nive, Ortez (27-2-1814) e Toulouse (12-4-1814, quando Napoleão já tinha abdicado). Para que se veja num pequeno quadro quanto nos foi penosa a Guerra Peninsular, copio de um artigo de Augusto Pinho Leal o seguinte resumo das operações desta luta gigantesca: 'Desde a invasão de Junot até ao fim da guerra, o exército português entrou em 16 batalhas gerais, 210 combates, 14 cercos, 18 assaltos, 6 bloqueios e 12 defesas de praças. Total: 276 ações' (Veja-se o jornal A Esperança, n° 352 de 13-3-1879)" (Memórias de Vila Viçosa, t. 14, 1984, pp. 11-12).

Evitando a triste sorte da Espanha, enganou Napoleão.

O Príncipe-Regente D. João, não podendo resistir in loco, teve o bom senso de transferir-se com toda a sua Corte para o Brasil ─ executando, aliás, plano muito antigo já esboçado desde o século XVI ─ onde desenvolveria uma ação benéfica extraordinária, com a qual muito lucraria o Brasil. Menos feliz foi o Rei Carlos IV, da Espanha, que não conseguiu realizar projeto similar de se transferir para o México, e acabou caindo, juntamente com seu filho Fernando (depois Fernando VII), nas mãos de Napoleão.

Certos autores modernos criticam injustamente a D. João VI, acusando-o de covardia. Postas as coisas como estavam, ele fez o que de melhor poderia ter feito. A transferência para o Brasil foi um lance político muito sagaz, que não só evitou a Portugal os vexames que sofreu a Espanha, reduzida a protetorado francês com José Bonaparte no seu trono durante mais de 5 anos (de Junho de 1808 a Setembro de 1813), mas também proporcionou consideráveis vantagens ao Brasil.

Vale a pena lembrar, a tal respeito, o depoimento do próprio Napoleão Bonaparte. No Mémorial de Sainte-Hélène, o ex-todo-poderoso senhor da Europa fez justiça a D. João VI, reconhecendo que sem a transferência da Família Real Portuguesa para o Brasil a Inglaterra não teria podido romper o apertado bloqueio em que se encontrava e tornar-se o agente principal da derrota final napoleônica (cfr. João Ameal, História de Portugal, Porto, 2ª ed., pp. 566-567).

Os tão comentados lances de hesitação de D. João nos dias que precederam o embarque, ridicularizados e caracaturizados por certos autores, foram, na realidade, um recurso teatral que iludiu os franceses que não estavam esperando por aquilo e ficaram, literalmente, a ver navios... D. João precisava agir como agiu, fingindo estar hesitando entre as duas alianças possíveis ─ a da Inglaterra e a da França ─ porque havia, em Portugal, uma poderosa e influente facção favorável a Napoleão. Também essa “quinta-coluna” foi iludida.

Tudo isso está bem documentado nas atas do Conselho de Estado português, que comprovam que a transferência para o Brasil não foi uma decisão precipitada e intempestiva, mas correspondeu a um plano magistral, longamente ─ e dissimuladamente ─ executado. Em conferência pronunciada no dia 26 de março último, no salão-nobre da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, o Príncipe D. Luiz de Orleans e Bragança, Chefe da Casa Imperial do Brasil, sustentou documentadamente essa tese, diante de um auditório de mais de 800 pessoas. Falaram na mesma sessão, e aduziram argumentação conclusiva, a esse respeito, o historiador português D. Marcus de Noronha da Costa, Conde de Subserra, membro da Academia Portuguesa da História e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro; a Profa. Dra. Nelly Martins Ferreira Candeias, presidente do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo; e o Prof. Dr. João Grandino Reis, diretor da Faculdade de Direito da USP. Essa sessão, que se revestiu de um brilho excepcional nos anais da própria Faculdade de Direito, foi, acima de tudo, um ato de justiça prestado à memória de D. João VI. Nela falou também, prestando homenagem a D. Pedro I, o filho primogênito de D. João VI, o Prof. Dr. Daniel Serrão, médico e cientista português de renome internacional, membro da Academia Portuguesa das Ciências e da Pontifícia Academia de Ciências do Vaticano.

É hora de se fazer justiça a D. João!

De fato, já é bem hora de recolocar no seu devido lugar histórico o injustiçado D. João VI, que aqui chegou como Príncipe-Regente, em 1808; que aqui foi coroado Rei, em 1815; que aqui assentou as bases de um grande Império luso-brasileiro; e que aqui teria permanecido até o fim de seus dias, se as circunstâncias lho tivessem permitido.

São ridículas e carentes de qualquer fundamento histórico e são, mais ainda, aberrantes do bom senso elementar, muitas das asserções freqüentemente feitas contra ele.

Pasmem os leitores com o seguinte trecho, extraído de um livro corrente no Brasil, a descrever o dia-a-dia de D. João VI: "Seu dia de trabalho começava às 6 horas da manhã. Quase sempre vestia um velho casaco sujo, puído, de grandes bolsos. Só em ocasiões especiais trocava o paletó pela farda vermelha com as condecorações. Depois das orações matinais, D. João quebrava o jejum com frangos e torradas. Então, guardava no bolso alguns pedaços de frango que comia enquanto concedia audiências aos fidalgos mais íntimos e ao pessoal da administração" (Grandes Personagens da Nossa História, Abril Cultural, S. Paulo, 1972, vol. II, p. 281).

É espantoso que dislates desses sejam postos ao alcance de qualquer leitor!

Os depoimentos isentos de estrangeiros que privaram nessa fase com D. João VI vão em sentido diametralmente oposto. Vejam-se, por exemplo, para citar apenas umas poucas fontes insuspeitas, o livro "O Rio de Janeiro visto por dois prussianos em 1819", de Theodor von Leithold e Ludwig von Rango (Cia. Editora Nacional, Série Brasiliana n° 328, São Paulo, 1966, tradução de Joaquim de Sousa Leão Filho) e o relato "A vinda da Família Real portuguesa para o Brasil", publicado inicialmente em inglês, em 1810, pelo oficial irlandês Thomas O'Neill, e cuja tradução acaba de ser lançada no Brasil pela Editora José Olympio.

Na realidade, D. João VI, talvez não tenha sido um homem excecionalmente brilhante, mas foi um monarca que soube condignamente, e até exemplarmente, desempenhar seu papel histórico. Uma das grandes vantagens da monarquia é que não requer necessariamente homens brilhantes, pois tal é a força da instituição e da continuidade que, como nota Marie-Madeleine Martin em "Le Roi de France, ou Les grandes journées qui ont fait la Monarchie", até mesmo monarcas medianos cumprem suas funções históricas de modo admirável.

Mas D. João VI não era apenas mediano. Ele estava muito acima da média e conseguiu, numa fase muito difícil da História luso-brasileira, resultados excelentes.

Entre outros, fizeram justiça a D. João VI historiadores sérios e conceituados como Oliveira Lima, Pandiá Calógeras e Hélio Vianna.

Na realidade, D. João, Príncipe-Regente e depois Rei, soube transformar em apenas 13 anos um Brasil vice-Reino, que encontrou provinciano e acanhado em 1808, num Reino-Unido a Portugal, estuante de vitalidade e de virtualidades que até hoje, decorridos dois séculos, ainda não foram suficientemente exploradas e ainda estão muito longe de se esgotar. Mais do que isso, soube prever a separação do Brasil de sua antiga Metrópole ─ intencionalmente não falo de independência, uma vez que o Brasil desde 1815, quando foi elevado à condição de Reino Unido a Portugal e aos Algarves, já não era dependente de Portugal à maneira de uma colônia ou mesmo de uma província.

D. João VI sentiu que essa separação era inevitável, sentiu que as circunstâncias a estavam tornando iminente. Soube prepará-la da melhor forma possível, deixando seu filho como nosso primeiro Imperador. Conta-se que, ao partir para Lisboa, em 1821 ─ aliás, a contragosto, pois pretendia ficar mais tempo no Rio de Janeiro, consolidando sua imensa obra de criação de um império ─ teria dito ao filho: "Pedro, apanha essa coroa e põe-na sobre tua cabeça antes que algum aventureiro lance mão dela".

O aguerrido e impetuoso Pedro I seguiu à risca o conselho paterno. Sem a permanência da dinastia brigantina no Brasil, teríamos tido o mesmo destino da América espanhola: ter-nos-íamos fragmentado numa série de repúblicas e republiquetas, dominadas por caudilhos e aventureiros.

(*) Jornalista profissional e escritor, diretor de publicações do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. E-mail: aasantos@uol.com.br

Comentários

Fusca disse…
Na época de D. Pedro II, o Brasil estava à frente das Américas, competindo em pé de igualdade com a Europa em novas tecnologias, além da riqueza e pujança do Império, tão invejado pelos hoje bolivarianos. Lamentavelmente, no Brasil de Lulla os indicadores sociais caíram 12 posições no 'ranking' mundial do IDH. Graças à ditalulla, o Brasil foi ultrapassado por países como a Sérvia, Bósnia-Hezegovina, Bielorússia e até a atrasadíssima Albânia. Isto porque ao contrário da propaganda oficial, o desgoverno lulopetista não investiu sequer em saneamento básico, originando uma mortalidade superior a esses países miseráveis, destruídos por guerras e pelo comunismo.
Monarquista disse…
São dados alarmantes e que a própria imprensa se nega a divulgar. Precisamos utilizar a força da Internet para transferir estas informações para o grande público. Parabéns pelo seu blog, Fusca, tem sempre novidades interessantes.

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